Diz a tradição, não se acusam suspeitos apontando-os a
dedo, porque, enquanto o indicador apontar a outra pessoa, potencialmente três dos
outros dedos acusam o acusador. Vê apenas maldades o maldoso, como o belo
vislumbra a belesa. Nas palavras do Sociólogo brasileiro, Prof. Pedro Demo, diríamos
que não podemos perceber da verdade se não a nossa própria representação nela.
É sobejamente conhecida, pelo mundo, a frase “Nada para nós, sem nós!” ou na língua
inglesa “Nothing for us, without us!”, mais
usada pelos grupos de pressão de pessoa com deficiência na defesa dos seus direitos.
Cansados de politizações do seu assunto, sem se assistir a mudanças significativas,
rumo a uma sociedade verdadeiramente inclusiva, entendem que precisam de participar
da definição, não só de políticas, como acções neste sentido. É neste contexto
que o presente artigo vai passar por uma construção do entendimento dos
desafios das pessoas com deficiência, um segmento de mulheres e homens da
sociedade moçambicana, que enfrenta múltiplas exclusões patentes.
Em Moçambique, o Censo de 2007, pelo Instituto
Nacional de Estatísticas (INE, 2008), as
pessoas com deficiência perfazem 2 (a 6) por cento do total da população do
país, estimada aos 25.7 milhões em 2015. Outros estudos, realizados com anuência
e/ou comparticipação do INE, estimam as pessoas com deficiência por volta dos 6
por cento (HIMoz, 2010 e CINTEF, FAMOD & INE, 2008), pese ainda que a OMS
considere que em sociedades subdesenvolvidas os índices variem entre os 15 a 20
por cento. É bem provável que o Censo tenha sido deveras limitado no
levantamento e nas estimativas por diversas razões (começando pelo próprio
entendimento da definição das pessoas com deficiências até aspectos de
tecnicidade relativa ao levantamento dos seus dados). De facto, por exemplo, a
população contabilizada no censo não toma em conta as pessoas na terceira idade
(6% da população nacional) e pessoas com as deficiências invisíveis, estas que
enfrentam desafios significativos no seu dia a dia, igual ou pior aos de seus
pares com deficiências. Moçambique é um dos países com maior insegurança
rodoviária no mundo, com elevados índices de acidentes com minas terrestres,
baixa cobertura e qualidade dos serviços de saúde, altas taxas de população
vivendo abaixo do limiar da pobreza (54% da população), baixos índices de
literacia e altos de analfabetismo, insegurança alimentar, doenças crónicas entre
outras endemias. Nesta base, podemos sustentar que o país pode, muito provavelmente
encaixar o grupo dos países das altas taxas (15 a 20 porcento) de pessoas com
deficiências estimativas, segundo a OMS.
As mulheres e homens
com deficiência em Moçambique figuram na camada da população d@s mais excluíd@s. Grande parte das pessoas com
deficiência vive nas zonas rurais onde os serviços de saúde, educação,
protecção social entre outros são escassos, inacessíveis ou mesmo ausentes. As
condições de vida das pessoas com deficiência são geralmente mais precárias que
as do resto da população. O Ministério do Género Criança e Acção Social (MGCAS,
2012) aponta dentre as razões da exclusão da pessoa com deficiência em
Moçambique: o baixo nível de escolarização, fraco nível de acesso ao mercado
laboral, a fontes de rendimentos, de serviços, da habitação, de informação, de
participação social e dificuldades de mobilidade, para alêm do acesso ao
transporte. Só para elucidar, e a título de exemplo, o MGCAS (2012) indica que
a taxa bruta de desemprego é mais alta nas pessoas com deficiência (39%) em
relação ao resto da população (9%), para além de enfrentarem constrangimentos
económicos e de infra-estruturas adaptáveis e adequadas para participarem de
actividades culturais e desportivas. São também as mais vulneráveis ao HIV/SIDA
devido a vários factores de risco agravados pelas dificuldades no acesso aos
mecanismos de prevenção e testagem (Groce, 2007). Em suma, e por isso, as
pessoas com deficiências formam o grupo dos mais pobres dos pobres e
vulneráveis dos vulneráveis.
Talvez interesse repescar o nosso conceito de
exclusão, já partilhado pela Comissão das Comunidades Europeias (2003), que a
define como sendo "um processo
através do qual certos indivíduos são empurrados para a margem da sociedade e
impedidos de nela participarem plenamente em virtude da sua pobreza ou
falta de competências básicas e de oportunidades de aprendizagem ao longo da
vida, ou ainda em resultado de discriminação". Tomando em base este
conceito, podemos perceber que a pobreza por si só, não é um marcador
abrangente de privação e/ou exclusão. A raça, a etnia, o sexo, religião, local
de residência, status de deficiência, idade, estado HIV ou outros marcadores
estigmatizados nas sociedades, conferem desvantagens que excluem as pessoas de
uma série de processos e oportunidades.
Do outro lado da moeda, a inclusão social acontece em um processo de melhorar as condições de vida
em certos indivíduos e grupos excluídos, para participarem na sociedade efectivamente.
Passa por capacitar as pessoas marginalizadas para poderem tirar proveito,
equitativamente, das oportunidades em expansão na sociedade em que se encontram.
Ela deve garantir que as pessoas tenham uma voz nas decisões que afectam suas
vidas e que gozem de igualdade de acesso a mercados, serviços e espaços
políticos, sociais e físicos. A inclusão social é um termo que pode ser usado
para descrever uma série de acções positivas para alcançar a igualdade de
acesso a bens e serviços, para ajudar todas as pessoas a participar na
comunidade e na sociedade, para incentivar a contribuição de todas as mulheres
e homens para a vida social e cultural e, estar ciente de e para desafiar todas
as formas de discriminação. Ao garantir que as mulheres e homens marginalizad@s,
incluindo as pessoas com deficiênica, têm maior participação na tomada de
decisões que afectam as suas vidas, se lhes permite melhorar o seu padrão de
vida e bem-estar em geral.
Já em Moçambique, verificam-se alguns marcos do nível
meramente político conducentes a inclusão das pessoas com deficiência. De
facto, a Constituição da República de
Moçambique (CRM, 2004) estabelece que,
“Todos os cidadãos são iguais
perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos
deveres...” (Artigo 35) e que, de forma mais específica, “Os cidadãos com deficiência gozam
plenamente dos mesmos direitos consignados na constituição e estão sujeitos aos
mesmos deveres com ressalva do exercício ou cumprimento daqueles para os quais,
em razão da deficiência, se encontrem incapacitados” (artigo 37). O artigo
125, mais adiante na CRM (2004) reforça o direito da Pessoa com Deficiência num
enunciado fortemente detalhado que por economia de palavras não vamos aqui
citar. Igualmente, o país aderiu a vários princípios e convenções
internacionais favoráveis à inclusão da pessoa com deficiência a destacar,
entre outras, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com
Deficiência (aprovada pela Resolução 29/2010 ratificada pela AR de 31 de
Dezembro). Todos estes instrumentos, e demais que aqui não fizemos menção, como
nota o Governo de Moçcambique, “preconizam a igualdade de direitos e de
oportunidades entre os cidadãos e promovem os direitos e deveres das pessoas
com deficiência” (MGCAS, 2012).
Mas então, o que deve estar a falhar para termos em Moçambique, até hoje, este inferno real, num
paraíso legal para as mulheres e homens com deficiência? Na nossa modesta
opinião falta o bom senso, o uso da razão e o sentido de responsabilidade em
diferentes níveis (individual, familiar, comunitário, político-estadual, etc.).
No nível individual, é preciso cada um(a) de nós se auto-questionar de como usa
os recursos em sua posse ou acesso para mudar a condição de exclusão das
pessoas com deficiência de uma forma mais abrangente – tomando em conta que,
fora de ter alguém próximo com deficiência, somos tod@s potenciais candidatos a
adquirir uma deficiência, dadas as vulnerabilidades a que estamos espost@s. Isso
implica, por outro lado e, em primeira instância, desenvolver o entendimento de
pessoa com deficiência como um ser semelhante a cada um(a) de nós. Na
comunidade, é nos suficiente o princípio básico da construção africana da
pessoa humana, que se baseia num alto sentido de solidariedade e partilha, ou
simplismente ubuntu. Mais uma vez,
aqui tem implicação a percepção da personalidade de cada mulher e homem com
deficiência antes da deficiência. Está mais do que claro que enquanto não
tivermos uma responsabilização do Estado Moçambicano, ao nível de todos os seus
poderes (legislativo, executivo e judicial) a inclusão da pessoa com
deficiência neste país não vai passar de meros documentos e discursos. Em fim,
a inclusão da pessoa com deficiência em Moçambique, é mesmo um desafio que deve
começar de casa, numa busca séria de um entendimento, numa atitude e acção
crítica que busca o respeito e a protecção de tod@s as mulheres e os homens,
sem exclusão.
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